Reencontro

Ando sobre as pedras. Gosto de encará-las encaixadas, como num quebra-cabeças que foi solucionado. Com quantas delas as almas artesãs que teceram a Rua do Bom Jesus tiveram as mãos rasgadas, a coluna maltratada? Quanto trabalho exigiu assimilar o enigma dos destinos e aguardar, paciente-mente, que a imagem de uma das vias mais belas do mundo surgisse no futuro, a elas inalcançável? Diriam que valeu a pena? Avanço de cabeça baixa, polindo os paralelepípedos já lisos, amaciados pelos carnavais do Recife. São assim minhas pausas de almoço: Digiro meus bocados de pensamentos entre recortes de conversas alheias e a música das cantinas, restaurantes e bares da cidade antiga. Hoje, Mart’nália desafiava numa delas “quero ver se você tem atitude, se vai me encarar” e, tomada pela provocação disfarçada de desejo de açúcar, resolvi entrar naquela cafeteria que atiçava minha curiosidade, mas não-sei-o-porquê nunca tinha reparado sua vitrina. Tive a surpresa de décadas.

– Larissa?

A doce voz da minha infância chamava de um lugar derradeiro, por trás do pretérito. Torci o corpo atordoado e distingui uma das minhas ex-vizinhas da Paraíso do Leste. O Alto do Mandú tem uma rua de paralelepípedos com esse nome e a despeito do que esperam de um bairro humilde, sua alcunha é apropriada. Ao menos era, no Éden da minha inocência. Foram nas pedras de lá que corremos de pés descalços e deixamos nossos pedaços, agora cicatrizes nos joelhos e queixos. O palco da nossa imaginação tem a largura de um carro, mas parecia de um país inteiro. Nosso país das maravilhas, onde fomos felizes nos banhos de mangueira dos carnavais, suavizando à nossa própria maneira, as quinas ásperas da realidade.

A muito disso devemos a mãe dela, uma criatura sonâmbula nesse mundo, incapaz de acordar pra crueza ao redor. Ou, talvez, por estar bem ciente, nos deixasse experimentar os mundos da fantasia com muita liberdade. Havia emancipação para fazer quase qualquer coisa sob sua vigília, desde desenhar em paredes a fabricar um móvel com prego e martelo, tudo contrário a superproteção de filha única que vivia.

Crescer entre tantos universos cavou um poço de pluralidades em mim.

Morávamos abaixo das possibilidades, enquanto meus pais juntavam o dinheiro da própria casa – Aquela da minha infância era de herdeiros. Mas, tendo sempre estudado em colégios particulares e recebendo, cedo ou esperado, tudo que pedia, aprendi sobre abismos sociais antes do tempo. Entendi ainda mais, quando reabracei minha amiga por volta do meio-dia da vida. Um abraço forte que nem sabia que guardava, desde que assisti ao velório da sua mãe à distância, quando o ápice da pandemia também negou a despedida. E se ela se alimentasse melhor? E se pudesse ter se internado em um hospital particular? E se capitães do mato fossem inelegíveis no planalto?

Talvez o abraço fosse o mesmo, mas as pedras no caminho não assombrariam com sol a pino. Numa virada de esquina em um território velho, numa das ruas mais bonitas do mundo, feita por mãos muito, muito pacientes.

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